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A HISTÓRIA PARA A CIÊNCIA

Já algumas vezes me perguntaram do porquê de eu ter escolhido a profissão que hoje tenho: Física. Talvez a resposta mais direta seria algo na linha "porque gostava de ficar olhando para o céu quando pequeno e imaginar como seriam outros mundos" - para o desespero de meus pais, que não entendiam o motivo do filho passar tantas horas em cima do telhado contando estrelas. Mas hoje, quando olho para trás e reflito mais profundamente, posso, com toda sinceridade, dizer que fui muito influenciado em minha escolha pelos excelentes professores que tive na escola, em particular um brilhante professor de Matemática.

Se foi assim, então porquê não escolhi Matemática e sim Física? Devo confessar que quando chegou a hora de tomar uma decisão fiquei em dúvida entre as duas, mas ao me recordar da famosa frase de Galileu Galilei que disse que "a Natureza era um livro aberto e a língua na qual este livro estava escrito era a Matemática", minhas dúvidas se esvaíram: escolhi algo que acomodasse minha paixão de criança com aquela do adolescente.

As influências e estímulos que recebemos quando jovens são muito decisivas em nossas vidas e dentre todas as matérias do colégio havia uma outra que me fascinava: a História. A escola pública da (então relativamente pequena) cidade no interior de São Paulo onde nasci tinha em seu corpo docente um grupo de professoras que conseguiram nos mostrar que a História é muito mais uma questão do presente do que do passado. Explico melhor: com a História podemos compreender aquilo que somos HOJE, como indivíduos ou sociedade, olhando para nosso passado, para o ONTEM. Isso pode parecer um paradoxo, afinal a própria etimologia da palavra história vem de uma raiz grega que significa saber e, embora nossa imaginação não conheça fronteiras, não podemos saber o que o futuro nos reserva. Mas se tivermos em mente que os objetivos da Ciência são o de expandir as fronteiras do conhecimento, então a História pode contribuir e muito para atingirmos este objetivo.

Mas em que a História ou as "histórias" podem contribuir para as Ciências ditas "duras": Física, Matemática ou Química? A medida que fui me aprofundando naquela que escolhi por profissão - e este é um processo que nunca terá um fim - fui amadurecendo e melhor apreciando a importância de entendermos o "porquê" por trás dos "porquês". Afinal nas ciências queremos entender o porquê das coisas: porquê o céu é azul na Terra e amarelo em Marte? Porquê a água molha? Mas também vale e muito a pena perguntarmos o que nos leva a fazer estas perguntas, a estudar este e não aquele assunto. Porque Einstein fez o que fez? Alguém poderia tê-lo feito em seu lugar?

Estudando as histórias por trás das grandes descobertas podemos aprender muito sobre o que a Ciência realmente é: em primeiro lugar, um esforço coletivo. Ela pode dar grandes saltos pela mão de alguns únicos indivíduos, mas mesmo estes viveram num ambiente de estímulo e troca e, portanto, seu mérito é fruto também de sua interação com seus semelhantes. Segundo, que muitas vezes os caminhos nos conduzem a becos sem saída, e, portanto, a Ciência é um esforço continuado que sempre requer novas cabeças e novas idéias que nos ajudem a enxergar novas direções. Terceiro e talvez muito mais importante: nossas decisões, enquanto cientistas, podem influenciar toda uma sociedade - e nem sempre de maneira positiva.

Há na Ciência grandes exemplos humanos de coragem civil, como o caso do físico alemão Max Von Laue (1879-1960), que durante a ditadura nazista na Alemanha não se curvou perante a tentativa oficial de expurgar a Ciência da "nociva influência semita" e manteve uma postura de retidão, defendendo colegas judeus perseguidos pelo sistema. Ou exemplos de como o poder, quando mal utilizado, pode fazer com que toda uma área de pesquisa seja "desprezada" durante anos e seus defensores ostracizados ou até mesmo mortos: o exemplo mais claro é o do biólogo russo Trofim Lysenko (1898-1976) que, defensor de uma teoria genética própria chamada de lysenkoismo, conseguiu por décadas impedir o desenvolvimento da genética na extinta União Soviética e foi responsável pelo banimento ou morte de muitos cientistas, entre eles o grande geneticista Nikolai Vavilov (1887-1943). Lysenko era o presidente da seção de Biologia da respeitadíssima Academia de Ciências e assim responsável por ditar as diretrizes de pesquisa na área. Não fosse a atitude corajosa de cientistas no início dos anos 60 - ironicamente físicos, em sua grande maioria - que insatisfeitos com a deturpação da verdade atacaram publicamente os desmandos de Lysenko, ele teria continuado por mais alguns anos no poder.

Devemos então deixar claro que há duas coisas que podemos entender quando falamos de "histórias" da Ciência: há histórias daqueles que fizeram ciência como há histórias das idéias científicas. As duas muitas vezes se misturam, pois a ciência é obviamente feita por pessoas que têm ou tiveram sua própria história de vida. Mas sem dúvida podemos aprender muito mais estudando a história das idéias - e aqui está, na minha opinião, aquilo que a História combinada com a Ciência tem a nos oferecer de mais fascinante: ela nos permite ver que muitíssimas vezes a busca do conhecimento por si só tem conseqüências futuras imprevisíveis. Há um famoso dito latino que resume isto de maneira fantástica: ars gratia artis, ou seja, a arte pela arte, o fazer pelo fazer.

Modismos em Ciência são importantes e também a resolução de problemas práticos é um importante incentivo ao progresso científico, mas quem saberia dizer, por exemplo, que o sistema binário, que é a linguagem natural dos computadores, foi inventado no século XVIII por um grande gênio, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), quando tentava criar uma língua universal, matematicamente precisa, com as quais os homens pudessem se comunicar, dando um fim as desavenças entre países? Nisto ele foi a muito influenciado pela suas tentativas de intermediar um acordo entre católicos e protestantes, causas de grandes conflitos na Europa em que viveu. Ou quem se lembra que toda a teoria de motores a reação (ou a jato) e foguetes de múltiplo-estágio, como os que se usam atualmente - bem como do tão falado "elevador espacial" - foram concebidas há mais de 100 anos por um obscuro professor ginasial russo? Konstantin Eduardovich Tsiolkovskii (1857-1935), hoje aclamado como o pai da Astronáutica, vivia e trabalhava na pequena Kaluga, uma cidade na província longe dos grandes centros do conhecimento, sem qualquer apoio ou estímulo externo.

Entender até onde chegaremos com nossa ciência e tecnologia não é um simples exercício de futurologia: olhando para o passado, para a história daqueles que fizeram a História, conseguiremos melhor entender a maneira como nossa ciência progride e assim evitar uma recaída nos erros do passado (Lysenko), a repetição dos acertos (von Laue, Leibnitz) e nos conscientizamos da importância do estímulo e incentivo, pois nunca sabemos onde um novo Tsiolkovskii pode surgir. Entender como a Ciência foi feita significa fazê-la melhor no futuro.


Sílvio Renato Dahmen é professor adjunto do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor visitante da Universidade de Würzburg pela Fundação Alexander von Humboldt (2006/2007), onde ministrou curso de História da Física. Atua na área de Física Estatística (Modelos Integráveis e Fenômenos Críticos), Tribologia (Teórica e Experimental) e História da Física.




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